domingo, 28 de fevereiro de 2010

Educação no Campo

Educação do Campo: o desafio de construção de um outro conceito educacional
por paula última modificação 03/04/2008 13:55
Colaboradores: Rudá Ricci
Temos no Brasil inúmeras experiências bem sucedidas de educação do campo, mas o Estado não as incorpora como política nacional

03/04/2008

Rudá Ricci

1. Educação do Campo e Educação da Cidade

Um livro famoso organizado por Carlos Rodrigues Brandão, publicado em 1982, cujo título é A questão política da educação popular, Ciço, um agricultor familiar residente no sul de Minas Gerais, responde o que para ele é educação. A resposta é uma aula, daquelas de inauguração de um ano letivo, e vale a pena reproduzir um trecho:
Porque é assim desse jeito que eu queria explicar pro senhor. Tem uma educação que vira o destino do homem, não vira? Ele entra ali com um destino e sai com outro. Quem fez? Estudo, foi estudo regular: um saber completo. Ele entra dum tamanho e sai do outro. Parece que essa educação que foi a sua tem uma força que tá nela e não tá. Como é que um menino como eu fui mudá num doutor, num professor, num sujeito de muita valia? Agora, se eu quero lembrar da minha: “enxada”. Se eu quero lembrar: “trabalho”. E eu hoje só dou conta de um lembrarzinho: a escolinha, um ano, dois, um caderninho, um livro, cartilha? Eu nem sei, eu não lembro. Aquilo de um bê-a-bá, de uma alfabetozinho. Deu pra aprender? Não deu. Deu pra saber escrever um nome, pra ler uma letrinha, outra. Foi só. O senhor sabe? Muito companheiro meu na roça, na cidade mesmo, não teve nem isso. A gente vê velho aí pra esses fundos que não sabe separar um A dum B. Gente que pega dum lápis e desenha o nome dele lá naquela dificuldade, naquele sofrimento. Mão que foi feita pro cabo da enxada acha a caneta muito pesada e quem não teve prazo dum estudozinho regular quando era menino, de velho é que não aprende mais, aprende? Pra quê? Porque eu vou dizer uma coisa pro senhor: pra quem é como esse povo de roça o estudo de escola é de pouca valia, porque o estudo é pouco e não serve pra fazer da gente um melhor. Serve só pra gente seguir sendo como era, com um pouquinho de leitura. (...)

Os dados oficiais são surpreendentes: temos, hoje, 100 mil escolas rurais, 6 milhões de alunos e 290 mil professores. Contudo os dados oficiais revelam que apenas 21% das crianças que vivem no campo terminam o ensino fundamental e apenas 10% terminam o ensino médio. Estudos recentes, como o de Maria José Carneiro (“O ideal rurbano: campo e cidade no imaginário de jovens rurais”, In DA SILVA, Francisco C. T. et ali.Mundo Rural e Política: Ensaios Interdisciplinares. Rio de Janeiro: Campus, 1998), que pesquisou jovens rurais, entre 15 e 26 anos de idade, residentes em Nova Friburgo (RJ) e Nova Pádua (RS), revelam o empenho dos jovens em melhorar seu padrão de vida, sem que isto implique negação da cultura de origem. A educação aparece como um elemento estranho, embora necessário, como aparece em várias entrevistas, como as duas que passo a destacar:

Eu tenho 41 anos e saí com 11 anos (...). Saí por convite da família, não por mim. (...) A gente saiu para buscar um estudo. Nossos pais, nossa família influenciou muito para que a gente saísse para estudar, para que tivesse estudo, tivesse formação. (...) Todos que saíram não voltaram porque a própria cidade te oferece mais coisas, ela te oferece lazer. (...) Alguns ficam, vão trabalhar na prefeitura e acabam ficando. Mas, hoje não! Hoje se tivesse uma terra para eu voltar..., nas condições que eu tenho hoje... eu até voltaria. (Filho de agricultor, gerente e sócio de uma indústria de lixas industriais em Caxias do Sul.)

Eu saí daqui, eu troquei a minha... eu diria assim, a minha herança eu troquei pelo estudo. (...) Se nós ficássemos em doze aqui, repartindo um pedaço pra cada um... ia ficar pouco pra todo mundo. Então, ‘me paga o estudo, me ponha na Faculdade e eu não preciso mais da terra...’ (Filho de agricultor, advogado, 46 anos de idade.)

A educação formal, como se percebe em inúmeros relatos, gera um descaso em relação à vida rural. O mais comum é o jovem, após a 4a série primária, procurar emprego na cidade como empregados domésticos, no pequeno comércio ou na construção civil. Nas pesquisas recentes, a velha tradição do filho mais novo ficar no meio rural já começa a desaparecer. Fica quem possui menor vocação para o estudo. Por este motivo, na América Latina, o único país que apresenta crescimento da população jovem no campo é o México. Em Nova Pádua (RS), dos 56 filhos de agricultores entrevistados, 83% informaram que não gostariam de permanecer na atividade agrícola, porque é um trabalho pouco rentável, sem futuro, instável, sem recompensa, duro, pesado e sujo. Segundo estudos recentes, 12% dos estabelecimentos dos agricultores familiares não têm sucessores, e uma parte considerável só tem um herdeiro. Assim, a educação formal para o meio rural passa a ser, pouco a pouco, compreendida em sua dimensão política e não apenas na possibilidade de capacitação e aumento de eficiência produtiva. É desta forma que lideranças rurais passam a incorporar propostas educacionais no seu discurso político como programas oriundos e que respondem às demandas e à dinâmica do mundo rural.

2. As várias propostas educacionais que nascem do mundo rural

Uma dessas propostas é a Pedagogia da Alternância, baseadas nas Maisons Familiales Rurales (MFRs), que surgiram em 1937, em Lauzun, na França, sede do cantão de Lot-et-Garonne. As escolas francesas nasceram num período em que o mundo rural já era fortemente afetado pela mecanização agrícola e enfrentava a crise de mercado e preços em vários produtos agrícolas, como leite e carnes. Seus ideólogos foram Jean Peyrat (agricultor e presidente do sindicato rural de Sérignac-Péboudou), padre Granereau e Arsène Couvreur (jornalista e criador do semanário agrícola nacional La France Agricole). As MFRs possuíam três pilares:

• a formação técnica (aprendizado prático e observações no terreno, procurando fomentar a profissão de agricultor);

• a formação geral (história, matemática);

• a formação humana e cristã.

As Maisons Familiales Rurales funcionavam como internatos, alternando o tempo de convívio do aluno na escola, com o tempo de convívio com seus pais. Daí a origem da alternância. As famílias forneciam parte dos suprimentos, além do pagamento de uma quantia mensal. No primeiro ano da experiência, a primeira semana de convívio foi marcada para após a colheita de novembro de 1935. Parte da programação era voltada para visitas técnicas: pomar, exploração agrícola, análise do funcionamento de máquinas. Todas atividades são permeadas por iniciativas de um “animador”, função exercida em rodízio, estimulando a formação social. Ao final, os jovens submeteram-se a uma prova estabelecida pelo programa oficial de formação por correspondência.

Na década de 40, no pós-guerra, foram detalhados os princípios, objetivos e métodos desta experiência:

• objetivos: formação integral de jovens, envolvendo instrução, educação e formação da personalidade;

• princípios: são essencialmente familiares. As iniciativas e responsabilidades pertencem aos pais dos alunos (assim como aos pais dos ex-alunos);

• método: alternância, articulando a interdependência entre trabalho e estudos, entre ação e reflexão, entre teoria e prática.

A partir dos anos 50, constituiu-se a Associação Internacional de organismos de Maisons Familiales. No Brasil, a experiência foi introduzida em 1968 (no Espírito Santo, nos municípios de Piúma, Anchieta, Rio Novo do S e Iconha) e proliferou nos anos 80. Os sócios ativos são pais de alunos, ex-alunos e outros apoiadores que possuem direito a voto. Priorizam a experiência socio-profissional. No entender de seus ideólogos, a experiência vivida é mais significativa que a ensinada. Valoriza-se, portanto, a experiência cotidiana, numa reapropriação do tempo holístico, anterior à organização do tempo escolar de inspiração taylorista. Na prática, o projeto educativo ocorre em três momentos, envolvendo a casado aluno, o centro educativo (a escola) e o meio socioprofissional. Se a casa é o local da pesquisa e observação, o centro educativo é o local da socialização das experiências, da comparação, análise, interpretação e generalização. No meio profissional são aplicados os conhecimentos, e surgem novos temas de pesquisa.

Os instrumentos pedagógicos e recursos utilizados são, também, distintos das escolas formais. As EFAs (Escolas Famílias Agrícolas), que estão mais presentes na região, utilizam planos de estudo (elaborados em conjunto), cadernos de realidade (cadernetas de campo), visitas de estudo, visitas às famílias e empreendimentos profissionais e projeto profissional do jovem. Algumas experiências brasileiras já possuem planos de formação estruturados. Este é o caso da EFA Chico Mendes, situada em Conselheiro Pena-MG. A escola possui 10 períodos de alternâncias e propõe 8 temas de planos de estudo. Os primeiros dois anos tratam de temas gerais e da vivência do aluno, o terceiro ano trabalha a produção regional (em especial, café) e o quarto ano enfatiza os processos produtivos (com introdução de estágios para aprofundar a descoberta profissional).

Já o projeto pedagógico do MST soma vários autores do campo educacional (Paulo Freire, Piaget e Makarenko) e do campo das lutas nacionalistas e de esquerda na América Latina (Jose Martí e Che Guevara). Tal sincretismo teórico gera uma formulação original: nacionalismo, construtivismo, experiências revolucionárias (apoiadas na noção de “homem novo”), marxismo e fenomenologia educacionais.

Um dos autores mais citados é Paulo Freire que, mais uma vez, é apropriado de maneira original. As palavras geradoras, que em Freire significam palavras que possuem forte significado para aqueles que estão estudando (por exemplo: tijolo, para trabalhadores da construção civil) e que auxiliam no início da decodificação da palavra escrita (o alfabetizando lê o significado e, depois, o signo), transfiguram-se, no MST, em complexos temáticos. Em outras palavras, um conjunto de temas, sempre vinculados à luta pela terra, organiza os currículos.

Há, ainda, uma clara articulação de aspectos técnicos e políticos na formação que desenvolvem. Assim, o processo educacional é entendido como “arma na luta contra a opressão, instrumento moral e intelectual”, base de organização do movimento socialista e também valorização dos conhecimentos vinculados à vida no campo e formação técnica que possibilite aumento de produção e agroindustrialização.

Um “Manifesto de Educadores e Educadoras da Reforma Agrária”, publicado em 1997 num jornal do MST, sintetiza os objetivos do seu projeto educacional:

Queremos uma escola que se deixe ocupar pelas questões de nosso tempo e que ajude no fortalecimento das lutas sociais e na solução dos problemas concretos de cada comunidade. (...) Acreditamos numa escola que desperte os sonhos de nossa mocidade, que cultive a solidariedade, a esperança e o desejo de aprender sempre e de transformar o mundo. Entendemos que para participar da construção desta escola nós, educadoras e educadores, precisamos construir coletivos pedagógicos com clareza política, competência técnica, valores humanistas e unidade de ação. Lutamos por escolas públicas em todos os acampamentos e assentamentos de Reforma Agrária do país e defendemos que a gestão pedagógica dessas escolas tenha a participação da comunidade sem-terra e de sua organização.

Vejamos cada um dos elementos destacados no texto acima.

• Formação para fortalecimento das lutas sociais

Nos textos de orientação pedagógica do MST, esclarece-se que um dos objetivos do processo educativo é auxiliar o trabalhador a se descobrir como explorado e organizar-se para eliminar tal exploração. Para tanto, várias datas e comemorações de momentos de luta são destacados como elementos importantes da prática pedagógica: Dia Internacional da Mulher, Dia do Trabalhador Rural, Dia da Consciência Negra e Dia Internacional da Luta Camponesa (17 de abril, data em que ocorreu a morte de muitos trabalhadores rurais em Eldorado de Carajás). Outro objetivo explícito é preparar jovens para assumirem papel de técnicos e doutores, buscando transformação social rural, na construção da justiça social e da sociedade progressista. Daí a decisão de se fortalecerem escolas públicas no interior dos assentamentos e acampamentos rurais e também nas regiões onde o MST esteja presente. Não propõe a criação de um sistema educacional próprio. Também constitui e cria todos níveis formais de escolaridade: educação infantil (ainda em processo de organização), ensino fundamental, ensino médio profissionalizante, supletivo e escolas de formação para o magistério.

• Formação para a ação solidária

O professor de um assentamento ou acampamento rural é orientado para criar condições para que alunos tomem decisões e sejam responsáveis por elas. Seu plano de trabalho deve conter:

• situações de estímulo para que os alunos se organizem e trabalhem em grupos;

• situações de aprendizagem para que tomem decisões por conta própria;

• situações em que planejem e avaliem as ações no coletivo dos alunos;

• situações em que controlem o trabalho e a produtividade;

• situações em que superem os oportunismos dos colegas. Neste aspecto há uma clara inspiração nos processos de formação de lideranças de movimentos sociais.

Há, entretanto, uma evidente ênfase na formação técnica. Para o MST, a criança deve, desde cedo, se envolver com um trabalho produtivo e com política na sua proposta curricular. Por este motivo, o conteúdo educacional possui correspondência com escolas regulares ou de formação técnica e incorpora inovações como discussões diárias, de 45 minutos, sobre acontecimentos do cotidiano. Por este motivo, não desejam criar um sistema paralelo ao oficial, mas alterar sua gestão: propõem que a administração escolar seja exclusivamente da comunidade em que a escola está inserida, e o financiamento deve continuar oriundo dos recursos estatais. Outra alteração é o conteúdo curricular.

Nos documentos do movimento os objetivos formativos são claros:

Formar pessoas que sejam sujeitos, com capacidade e consciência organizativa, capazes de construir uma nova forma de conviver, de trabalhar, de festejar as pequenas e grandes vitórias dos trabalhadores, devendo estimular a livre expressão de idéias e sentimentos, com firmeza na luta em defesa dos trabalhadores e ternura no relacionamento com as outras pessoas. A escola não é apenas lugar de estudo, mas lugar de trabalho.

3. A Política Oficial: da intenção ao gesto

O Conselho Nacional de Educação aprovou, em dezembro de 2001, as Diretrizes Operacionais para a Educação Básica nas Escolas do Campo. Tais Diretrizes constituem-se numa referência oficial para elaboração das estratégias educacionais rurais do país. O documento apresenta princípios nítidos, que embasam o parecer final do Conselho Nacional de Educação, e que convergem com vários princípios que norteiam os projetos pedagógicos educacionais não-oficiais.

O documento inicia descartando duas concepções que são consideradas equivocadas:

• o tom nostálgico de um passado rural de abundância e felicidade;

• a adoção do mundo urbano como parâmetro e o mundo rural como adaptação.

Ainda como orientação para a definição das Diretrizes, o Conselho Nacional destaca várias orientações de Constituições Estaduais brasileiras que incorporam em seu texto a preocupação com a educação rural. São elas:

• Rio Grande do Sul: inscreve a educação rural como projeto estruturador do desenvolvimento nacional. Articula o projeto educacional ao direito ao trabalho, à terra, à saúde e ao conhecimento;

• Acre: propõe que os currículos incorporem as representações dos valores culturais, artísticos e ambientais regionais;

• Maranhão: orienta para que o calendário escolar observe as estações do ano e os ciclos agrícolas;

• Sergipe: define que as férias escolares devam coincidir com o período de cultivo

do solo.

A partir dessas orientações, o parecer do Conselho Nacional de Educação define

as seguintes diretrizes:

• A identidade da escola do campo deve ser definida pela sua vinculação às questões inerentes à sua realidade, ancorando-se na temporalidade e saberes próprios dos estudantes, na memória coletiva que sinaliza futuros, na rede de ciência e tecnologia disponível na sociedade e nos movimentos sociais em defesa de projetos que associem as soluções exigidas por essas questões à qualidade social da vida coletiva no país (parágrafo único do Artigo 2o das Diretrizes);

• O Poder Público deve garantir a universalização do acesso da população do campo à Educação Básica e à Educação Profissionalizante de Nível Técnico (Artigo 3o );

• O currículo deve propiciar investigação direcionada para o mundo do trabalho e o desenvolvimento social economicamente justo e ecologicamente sustentável (Artigo 4o );

• As propostas pedagógicas devem contemplar a diversidade rural: cultural, social, política, econômica, de gênero, geração e etnia (Artigo 5o );

• O calendário escolar pode ser flexibilizado, salvaguardando os princípios da política de igualdade e orientações dispostas nos artigos 23, 24 e 28 da LDB (Artigo 7o );

• A gestão escolar deve ser democrática, constituindo mecanismos que possibilitem estabelecer relações entre escola, comunidade local, movimentos sociais e órgãos normativos do sistema de ensino e demais setores da sociedade (Artigo 10).

Não obstante estas diretrizes, escolas rurais em todo país foram desativadas ou nucleadas na zona urbana dos municípios. Para piorar, levantamento recente realizado pelo Observatório da Equidade, vinculado ao Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social criado pelo governo federal, indica a defasagem profunda entre a realidade educacional urbana e rural do país.

Enfim, temos no Brasil inúmeras experiências bem sucedidas de educação do campo, que respeita a lógica e a identidade cultural rural. Contudo, o Estado não as incorpora como política nacional. Desenvolve ações aqui ou acolá inspiradas nestas iniciativas. Mas não chega a adotar uma política nacional determinada a este respeito.

O erro é governamental, sem dúvida. Mas também de educadores engajados e de lideranças sociais. Nossas pautas de lutas e demandas dificilmente elegem a educação rural como ponto prioritário.

E assim, nossas crianças e jovens amargam viver num mundo cuja educação formal é sempre a do outro. Assim como nos ensinou Ciço.

Rudá Ricci é sociólogo e Doutor em Ciências Sociais; membro da executiva nacional do Fórum Brasil do Orçamento e do Observatório Internacional da Democracia Participativa.

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