domingo, 28 de fevereiro de 2010

REFLEXÕES SOBRE A PRÁTICA INTERDISCIPLINAR DA EDUCAÇÃO

REFLEXÕES SOBRE A PRÁTICA INTERDISCIPLINAR DA EDUCAÇÃO
AMBIENTAL NO CONTEXTO ESCOLAR
LIMA, Maria Jacqueline Girão Soares. – jaclima@centroin.com.br
GT: Educação Ambiental / n. 22
Introdução
Entre professores e pesquisadores do campo da Educação Ambiental, é comum
o entendimento de que a interdisciplinaridade (um de seus princípios mais
importantes) é imprescindível para o êxito das práticas de EA nos âmbitos formal e
não formal: uma análise de documentos de Conferências Internacionais de Meio
Ambiente e da legislação educacional brasileira fundamenta tal afirmação. Apresento,
a seguir, fragmentos de documentos e leis analisados, esclarecendo que o foco deste
trabalho foi na EA realizada no contexto escolar.
A recomendação nº 1 da Primeira Conferência Intergovernamental sobre
Educação Ambiental - a Conferência de Tbilisi - organizada pela UNESCO em 1977,
diz que:
A educação ambiental é o resultado de uma orientação e articulação de diversas disciplinas e
experiências educativas que facilitam a percepção integrada do meio ambiente, tornando
possível uma ação mais racional e capaz de responder às necessidades sociais (...). Para a
realização de tais funções, a educação ambiental deveria (...) enfocar a análise de tais
problemas através de uma perspectiva interdisciplinar e globalizadora, que permita uma
compreensão adequada dos problemas ambientais.
O mesmo documento inclui a interdisciplinaridade como um de seus princípios
básicos, afirmando que à EA deve ser aplicado “um enfoque interdisciplinar,
aproveitando o conteúdo específico de cada disciplina, de modo que se adquira uma
perspectiva global e equilibrada” (Dias, 1998). Entre as recomendações do Plano de
Ação aprovado na Conferência de Estocolmo (realizada em 1972), merece destaque a de
nº 96:
de enfoque interdisciplinar e com caráter escolar e extra-escolar, que envolva
todos os níveis de ensino e se dirija ao público em geral, jovem e adulto
indistintamente, com vistas a ensinar-lhes as medidas simples que, dentro de suas
possibilidades, possam tomar para ordenar e controlar seu meio.
Outro documento de referência para a EA, a Carta de Belgrado,
produzida durante Conferência realizada em 1975, tem como um dos
Princípios de Orientação aos Programas de Educação Ambiental “assumir um enfoque
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interdisciplinar”. E o Programa Nacional de Educação Ambiental (ProNEA),
elaborado durante o Fórum Global da Rio-92 – cujos objetivos “estão em consonância
com os objetivos fundamentais da educação ambiental contidos na Lei nº 9.795/99” –
tem como um de seus princípios a transversalidade, construída a partir de uma
perspectiva inter e transdiciplinar.
No âmbito da legislação, o antigo Conselho Federal de Educação (CFE)
emitiu o Parecer 226/87, enfatizando que a Educação Ambiental deve ser iniciada, na
escola, numa abordagem interdisciplinar, levando a população a um posicionamento
em relação a fenômenos ou circunstâncias do ambiente, e a lei 9.795 de 27 de abril de
1999, que institui a Política Nacional de Educação Ambiental, tem como um de seus
princípios “o pluralismo de idéias e concepções pedagógicas, na perspectiva da inter,
multi e transdisciplinaridade” 1 . Por fim, meio ambiente é um dos Temas Transversais
dos Parâmetros Curriculares Nacionais, que, em seu texto introdutório, recomendam
que os mesmos sejam trabalhados de forma transversal e interdisciplinar nos
currículos escolares.
Neste ensaio, busquei contribuir para o debate sobre os limites e as
possibilidades de uma EA interdisciplinar no âmbito escolar, com o objetivo de
problematizar o entendimento de que a ausência desta prática gera, necessariamente,
uma EA “cartesiana e fragmentada”. Procurei nos Anais do I, II e III EPEA (Encontro
de Pesquisa em Educação Ambiental) pesquisas sobre EA escolar, e fundamentei
teoricamente a questão da interdisciplinaridade como prática pedagógica e política
educacional em autores do campo do Currículo.
Disciplinaridade x interdisciplinaridade na visão dos autores de Currículo
Vou abordar a questão da organização disciplinar dos currículos escolares a
partir das perspectivas de Macedo (1999), Lopes (2000) e Macedo & Lopes (2002).
Tal discussão, no meu entender, é fundamental para o debate sobre a disciplinaridade/
interdisciplinaridade/transversalidade dos conteúdos escolares. Em artigo sobre a
constituição da disciplina escolar Ciências, Macedo e Lopes (2002:73) argumentam
que os conhecimentos escolares não são mera simplificação dos conhecimentos
1 É interessante ressaltar que essa mesma lei determina que a EA não seja trabalhada por meio de
disciplina específica, mas que permeie o currículo das disciplinas.
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científicos, mas conhecimentos produzidos na e pela escola, a partir da
recontextualização dos diversos saberes que circulam na sociedade. Tal distinção vem
de encontro às críticas à disciplinarização dos currículos apoiadas nas críticas ao
conhecimento científico, pois trata os conhecimentos científicos e escolares como
epistemologicamente distintos.
Segundo as autoras, a despeito das inúmeras tentativas de se produzir
currículos interdisciplinares, os saberes escolares vem sendo historicamente
transmitidos por meio de disciplinas, sendo difícil trabalhar fora desta matriz. Isso,
porém, não impede que haja mecanismos de integração disciplinar, seja pela criação
de disciplinas integradas ou pela articulação de disciplinas isoladas. Um exemplo de
integração de diferentes áreas em uma matriz disciplinar é a disciplina escolar
Ciências, que abrange conteúdos oriundos de diversos campos das ciências naturais.
Macedo (1999:43) afirma que “os PCN nos põe de novo diante de um
problema antigo na área do currículo: as disciplinas tradicionais não dão conta de um
conjunto de questões postas pela realidade vivida pelos alunos”. Isso pode ser
percebido no item “Transversalidade e Interdisciplinaridade” da Introdução deste
documento (Brasil, 1998:30), onde se lê que a interdisciplinaridade vem questionar a
fragmentação da realidade, sobre a qual a escola se construiu. Esta autora questiona a
introdução, nos PCN do ensino fundamental, da abordagem transversal de temas
considerados fundamentais para a “compreensão da realidade social” (Brasil,
1998:17), sinalizando a incoerência presente na inclusão transversal e interdisciplinar
de temas em uma estrutura organizada em torno de disciplinas escolares. Se os PCN
criticam a disciplinarização do conhecimento escolar e criam os Temas Transversais
como “solução” para esse problema, não deveriam, então, transformá-los em
disciplinas, ao invés de reforçar a organização disciplinar dos currículos?
A interdisciplinaridade nas pesquisas sobre EA escolar
Pelo exposto, parece óbvio que o entendimento de Palharini (2003:7) e outros
pesquisadores da EA, de que a discussão sobre o meio ambiente na escola - baseada
no conhecimento científico - compromete a compreensão da multiplicidade de fatores
que compõe a problemática ambiental, não busca entender as especificidades do
contexto e do conhecimento escolar. Apesar de fazer parte do ideário da Educação
Ambiental, a interdisciplinaridade como proposta pedagógica é ainda de difícil
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execução: não há, entre os profissionais que trabalham com EA, um consenso sobre o
que seja essa prática. Andrade (2003) realizou uma pesquisa sobre a aplicabilidade, no
contexto escolar, da Lei 9.795/99 (Lei de Política Nacional de Educação Ambiental)
do ponto de vista dos educadores. O autor buscou compreender as possibilidades e
desafios enfrentados para a sua implementação nas escolas brasileiras, e um dos
obstáculos identificados a partir de entrevistas com professores de ensino superior,
diretores, coordenadores e professores de ensino fundamental e médio está
relacionado à própria natureza da EA, que, por ser um campo em construção, gera
confusão acerca de seu significado, princípios e metodologias.
Cf. este autor, a fragilidade da EA atinge alguns dos princípios presentes na lei,
como interdisciplinaridade, e os resultados de sua pesquisa demonstram que há uma
grande variedade de concepções sobre os seus significados. Tal constatação me leva a
suspeitar, juntamente com Andrade, que conceitos como interdisciplinaridade,
“holismo” e “sustentabilidade”, que habitam os discursos da EA, podem estar sendo
aceitos sem a necessária reflexão por parte dos sujeitos envolvidos, e que a variedade
de entendimentos sobre os mesmos acaba por colocar em cheque sua validade.
Considerações finais
Não obstante a falta de uma definição objetiva sobre o conceito de
interdisciplinaridade, as recomendações contidas nos documentos das Conferências de
Meio Ambiente são, em geral, transpostas diretamente para o contexto escolar,
ignorando suas especificidades. Ao cruzar a discussão sobre as dificuldades em se
definir esse conceito com estudos sobre os limites da prática interdisciplinar em uma
escola de tradição disciplinar, busquei problematizar o argumento de que a EA no
contexto escolar não é interdisciplinar devido à fragmentação dos conteúdos e/ou por
desinteresse dos professores. Outras dificuldades, como a falta de encontros para o
planejamento de projetos interdisciplinares, de tempo e de formação dos professores em
EA complexificam ainda mais este quadro. Ainda assim, inúmeros trabalhos de EA -
interdisciplinares ou não – vêm sendo realizados nas escolas brasileiras, com pouca ou
nenhuma divulgação.
É fato que a natureza interdisciplinar da EA demanda um olhar também
interdisciplinar para as suas práticas, mas, se não enxergarmos o que é peculiar a cada
espaço, corremos o risco de focarmos nossas pesquisas num diagnóstico equivocado -
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porque deslocado da realidade - de problemas e limitações, sem avançar no sentido de
propor soluções para superá-los.
Para Lopes (2000:162), não existe propriamente uma impossibilidade de se
trabalhar fora da matriz disciplinar na escola, mas é importante que sejam entendidos os
mecanismos de organização disciplinar dos currículos escolares, bem como os
mecanismos de hierarquização, reprodução e exclusão, presentes tanto em currículos
disciplinares como em propostas interdisciplinares e/ou de integração curricular.
Finalizo este ensaio com Gomes (2005), para quem “a complexidade da escola e dos
conhecimentos por ela veiculados pode estar mascarando as diversas formas de inserção
da educação ambiental”.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ANDRADE, Daniel Fonseca. Alguns aspectos da Lei de Política Nacional de Educação
Ambiental do ponto de vista dos educadores. Anais do II Encontro Pesquisa em
Educação ambiental. São Carlos, UFSCar, 2003 (CD).
BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionais: Temas transversais. Brasília: Secretaria
de Educação Fundamental/MEC/SEF, 1998.
DIAS, Genebaldo Freire. Educação Ambiental: princípios e práticas. São Paulo: Gaia,
1998.
GOMES, M. Margarida. Temáticas ambientais na escola: o pensamento de Paulo Freire
nos debates da educação ambiental. Anais do III Encontro Pesquisa em Educação
Ambiental.. Ribeirão Preto, USP, 2005 (CD).
LOPES, A. R. C. Organização do conhecimento escolar: analisando a disciplinaridade e
a integração. In: CANDAU, V. M (org). Linguagens, espaços e tempos no ensinar e
aprender (X ENDIPE). RJ, DP&A, 2000.
MACEDO, Elizabeth. Parâmetros Curriculares Nacionais: a falácia de seus temas
transversais. In: MOREIRA, Antonio Flavio (org). Currículo: políticas e práticas. São
Paulo:Papirus, 1999.
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MACEDO, Elizabeth & LOPES, Alice Casimiro. A estabilidade do currículo
disciplinar: o caso das ciências. In: Disciplinas e integração curricular: histórias e
políticas. Rio de Janeiro, DP&A, 2002.
PALHARINI, Luciana. Conhecimento disciplinar: (im) possibilidades do discurso
sobre a problemática ambiental. Anais do II Encontro de Pesquisa em Educação
ambiental. São Carlos, UFSCar, 2003 (CD).
http://www.bio2000.hpg.ig.com.br/papel_do_governo.htm.
http://www.mma.gov.br/estruturas/educamb/_arquivos/pronea_3.pdf
.

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